4. Modelos em tecnologias de apoio

Muitos modelos têm sido propostos na literatura para enquadrar as tecnologias de apoio na vida das pessoas com deficiência. Esses modelos pretendem servir de guia às intervenções, à formação e à investigação em Engenharia de Reabilitação. Têm evoluído a par com a evolução das sociedades, estão muitas vezes ligados ao contexto cultural em que são propostos, e não devem por isso ser considerados melhores ou piores que outros, são apenas diferentes. Em comum a quase todos está o facto de se centrarem na atividade que uma dada pessoa pretende realizar, incluírem o produto de apoio necessário à realização da atividade, e levarem em conta o contexto em que essa atividade tem lugar. Todos assumem uma perspetiva holística da Engenharia de Reabilitação, considerando-a uma área multidisciplinar que cruza conceitos da psicologia, das ciências da vida, da engenharia, etc.

O projeto HEART – Horizontal European Activities in Rehabilitation Technology (1993-1995), em que estiveram envolvidas 21 organizações de 12 países europeus, incluindo Portugal, definiu um modelo para enquadrar o desenvolvimento de programas de formação para profissionais na área das tecnologias de apoio (Azevedo, Féria, Nunes da Ponte,Wann, & Recellado, 1994). Entendeu-se que as tecnologias de apoio não deveriam ser vistas isoladamente, mas sim como uma parte de uma abordagem integrada às necessidades das pessoas com deficiência. As tecnologias de apoio foram encaradas como uma forma de ultrapassar as limitações funcionais de pessoas com deficiência, em diversos contextos, aumentando as capacidades funcionais da pessoa ou reduzindo as barreiras físicas e/ou sociais dos contextos. O modelo tem três componentes: a humana, incluindo a pessoa com deficiência, as suas características e as suas preferências; a socioeconómica, englobando as barreiras sociais e económicas colocadas pelos diversos contextos, e a técnica, com as tecnologias de apoio e as suas características técnicas. De acordo com o projeto HEART, qualquer modelo de formação em tecnologias de apoio deverá cobrir estas três componentes. A Figura 4.1 ilustra o modelo apresentado e, também, a definição de tecnologia de apoio como uma tecnologia que permite reduzir o hiato entre as capacidades da pessoa e as exigências colocadas pelo ambiente.

Figura 4.1: Modelo HEART

Deste projeto resultou também uma classificação para as diversas áreas de atividade de uma pessoa, áreas essas que devem ser abrangidas numa formação em tecnologias de apoio: 53 Mobilidade,Manipulação, Comunicação e Orientação. Uma quinta área – Cognição – foi considerada como influenciando todas as anteriores. Definições de cada uma destas áreas serão apresentadas neste livro no início de cada capítulo dedicado às tecnologias de apoio para essas mesmas áreas.

Cook e Hussey, em 1995, propuseram o modelo HAAT – Human Activity Assistive Technology – com o objetivo de estudar o desempenho de uma pessoa na realização de uma atividade, num dado contexto, utilizando uma dada tecnologia de apoio (Cook & Polgar, 2008). Nestemodelo estão assim envolvidas quatro componentes: a Pessoa, a Atividade, a Tecnologia de Apoio e o Contexto em que aqueles três fatores integrados existem (Figura 4.2). As Atividades são realizadas como parte do nosso quotidiano, são necessárias à nossa existência, podem ser aprendidas e são reguladas pela sociedade e cultura emque cada umestá inserido (Canadian Association of Occupational Therapists, 2002). Podem ser classificadas em cuidado pessoal, produtividade e lazer. A Pessoa é quem está a realizar a atividade. Possui capacidades físicas (força, destreza, equilíbrio, etc.) e cognitivas (atenção, julgamento, capacidade de resolução de problemas, concentração, por exemplo), ambas influenciando as suas emoções. O Contexto em que é realizada a atividade inclui quatro fatores principais: contexto físico (ambiente construído e natural e parâmetros físicos, como luminosidade, som ambiente), contexto social, contexto cultural e contexto institucional. A Tecnologia de Apoio, comas diversas componentes listadas na Figura 4.2, é qualquer dispositivo, equipamento ou sistema usado pela pessoa para realizar a atividade desejada, num determinado contexto. É na interação complexa e dinâmica entre estas quatro componentes que se deve enquadrar a utilização de tecnologias de apoio. Uma vez que a adesão ou não a uma tecnologia de apoio depende, emgrande parte, da avaliação subjetiva que o utilizador final faz damesma, é a pessoa (que quer realizar uma dada atividade, num dado contexto, necessitando para tal de uma tecnologia de apoio) que deve ser o centro de toda a intervenção.

Figura 4.2: Modelo HAAT (Cook & Polgar, 2008)

Os conceitos desenvolvidos no projeto HEART serviram de base para o projeto TELEMATE – Telematic Multidisciplinary Assistive Technology Education (1998-2001), que se focou nas necessidades de formação dos profissionais na área das tecnologias de apoio (Turner-Smith & Blake, 1999). Defendendo-se equipas multidisciplinares para as intervenções, argumenta-se que 54 a formação específica deve ter em conta as diferentes formações de base, proporcionando previamente os conceitos necessários nas áreas com que os formandos não estejam familiarizados. Por exemplo, no âmbito da formação em tecnologias de apoio, um engenheiro poderá necessitar de adquirir conhecimentos de anatomia e fisiologia humanas, enquanto um terapeuta poderá necessitar de adquirir conhecimentos em mecânica ou processamento de sinais. A Figura 4.3 ilustra estas ideias.

Figura 4.3: Modelo TELEMATE

Enders (1999) propôs um modelo que representou graficamente como um triângulo no interior de outro (ver Figura 4.4). O triângulo mais pequeno simboliza um sistema de suporte especializado cujas componentes assistência pessoal (AP), estratégias adaptativas (EA) e produto de apoio (PA) são os lados do triângulo. A área deste triângulo traduz a capacidade funcional do indivíduo. Representam-se assim as três formas de fazer face às dificuldades impostas por uma atividade num dado contexto: ou se procura uma assistência pessoal, ou se usam formas alternativas de realizar a tarefa, ou se recorre ao auxílio de um produto de apoio. O triângulo maior, que contém o anterior, simboliza um sistema de suporte generalizado com as dimensões ferramentas, estratégias e cooperação. A sua área representa as realizações humanas potenciadas por aquelas três dimensões. O facto mais interessante deste modelo é a possibilidade de dar uma perspetiva dinâmica aos sistemas de apoio variando as dimensões dos dois triângulos. De facto, as tecnologias de apoio devem ser capazes de se adaptar aos contextos dinâmicos em que vivem os seus utilizadores. Um ponto fraco deste modelo é não descrever apropriadamente as características do ambiente em que as atividades se pretendem realizar.

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Figura 4.4: Modelo de Enders (1999)

Azevedo (2006), considerando que os modelos existentes eram demasiado centrados na tecnologia de apoio e que não forneciamuma imagemdinâmica das atividades que o utilizador pretende realizar nos mais diversos contextos, propôs o “modelo dos círculos dinâmicos das atividades humanas”, com base no modelo de Enders e no modelo HAAT. O novo modelo foi construído tendo como ponto de partida as diferentes áreas de atividade que qualquer ser humano (com ou sem deficiência) pretende realizar: comunicação,mobilidade,manipulação e orientação, sendo que a área da cognição está intimamente ligada a todas as outras uma vez que, sem“cognição”, quaisquer atividades deixam de ter significado. As diferentes áreas de atividade foram representadas por círculos dentro de um retângulo que simboliza o contexto (Figura 4.5). A área desses círculos varia de acordo com o nível da atividade e diferentes retângulos podemser usados para representar contextos diversos, também eles dinâmicos.As tecnologias de apoio (àmobilidade, comunicação, etc.) podemser incluídas dentro dos círculos de atividade, ao aumentarem as capacidades funcionais da pessoa, ou também dentro do contexto, ao reduzirem as barreiras colocadas por este.

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Figura 4.5: Modelo dos círculos dinâmicos das atividades humanas

Da interação entre a atividade e o contexto resulta que nem todas as áreas de atividade assumem a mesma dimensão em todos os instantes de tempo. Considere-se o exemplo de uma pessoa que se desloca em cadeira de rodas e que pretende ir de sua casa para uma loja perto mas cuja localização exata desconhece, pelo que terá de procurar ajuda. Neste exemplo, a atividade principal a realizar é deslocar-se à loja (mobilidade), usando um produto de apoio (a cadeira de rodas), num contexto físico e social não conhecido com exatidão (há incerteza em relação à localização da loja). Mas todas as áreas de atividade estão envolvidas: a pessoa necessita de manipular o joystick para comandar a cadeira de rodas, necessita de se orientar espacialmente, e necessita de comunicar para obter informações da localização da loja. É a cognição que permite a correta integração de todas estas atividades para produzir o efeito desejado. Para captar a dimensão de cada área de atividade ao longo do tempo, poderá recorrer-se a uma representação gráfica como a da Figura 4.6. Na figura, o período entre os instantes 1 e 2 corresponde à deslocação entre a casa e uma passadeira, em que todas as áreas de atividade estão envolvidas mas com predominância para a mobilidade; entre os instantes 2 e 3 a pessoa atravessa a passadeira, continuando a área de atividade da mobilidade a ser predominante, embora com um nível inferior ao do período anterior, traduzindo-se assim a menor velocidade de deslocação imposta pelo contexto; no instante 3 a pessoa pede indicações sobre a localização da loja e a área de atividade predominante é assim a comunicação; finalmente, entre os instantes 3 e 4, volta a ser a área da mobilidade a principal, mas seguida de perto pela orientação e pela manipulação, uma vez que a deslocação agora é efetuada num ambiente que não se conhece e com base nas indicações recebidas.

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Figura 4.6: Representação dinâmica das áreas de atividade na realização de uma tarefa

Note-se que este modelo se aplica a qualquer pessoa, com ou sem deficiência. O foco do modelo são as atividades e os contextos em que essas atividades se desenvolvem.

Em (Azevedo, 2006) propõe-se também que as áreas de atividade sirvam de base a uma classificação das tecnologias de apoio, isto é, propõe-se a divisão das tecnologias de apoio em tecnologias de apoio à comunicação, à mobilidade, à orientação, à manipulação e, em casos específicos, à cognição. Em Portugal, usa-se a classificação definida pela International Standards Organization (ISO) para a prescrição de produtos de apoio (ver Tabela 4.1).

Neste livro segue-se a classificação sugerida em (Azevedo, 2006) para descrever as tecnologias de apoio (capítulos 6, 7, 8 e 9).

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